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A experiência da sedução

Renato Janine Ribeiro

Uma vida alcança significado, em boa parte, graças às revelações de que ela é feita. Provavelmente a primeira epifania que temos – pelo menos, enquanto não conhecemos mais sobre a vida intrauterina, que deve ser riquíssima – é a do nascimento. Nascer é uma experiência difícil, quase certamente sofrida, ainda mais porque se perde um ambiente acolhedor, cálido, molhado, protegido, para ingressar num vasto mundo que vai demorar muito para se constituir como bom; e não poucas vezes jamais chega a ser bom, nunca chega, sequer, a fazer sentido, a encontrar, este vasto mundo, uma rima que o redima. Mas, depois disso, vamos tendo revelações. Uma das peças publicitárias mais celebradas de nossa cultura – isso, sendo o Brasil um país que tem publicitários de primeira linha – é a do primeiro soutien que “a gente nunca esquece”: o rosto do menino iluminado, entre fascinado e chocado, ao ver pela primeira vez uma mulher somente de soutien, numa revelação talvez precoce, talvez não, da beleza feminina como sendo de ordem sexual. O erotismo surge assim como efração, como surpresa, como deslumbramento – e, como tudo o que deslumbra, como algo que eclipsa, ofusca, muda para sempre o modo de olhar as coisas.

 

Toda grande revelação é assim. Ela retira o véu que encobre o mundo, ela desvela, portanto, e ao mesmo tempo ela mostra a verdade, o que estava por trás do véu, o que se achava escondido. Seu primeiro efeito é o de preencher os olhos tanto, que nada mais sobra. Por alguns instantes, que podem parecer demasiado longos, a vista está tão cheia que somem os objetos; em seu lugar, aparece – o quê? Uma luz? Objetos novos? Uma chance de viver a vida de um modo diferente?

 

Vivo numa cidade que deve o nome a ter sido fundada no dia em que se festeja um cegamento. Pois seu patrono, Saulo de Tarso, perdeu a vista numa viagem a Damasco. Ele até então vivia perseguindo os cristãos, implacável. De repente, em plena estrada, fora de toda urbs, de toda civitas, de todo espaço urbano que protege e resguarda, uma luz o cega e uma voz o interpela. O episódio é conhecido, e não vou recontá-lo. A revelação de Cristo a seu perseguidor ofusca Saulo. Ele convalesce e se converte. Toda grande revelação só vale, pois, se ela opera uma conversão. Nada será como antes. O perseguidor se torna pregador. Saulo se torna Paulo. Perde o gentílico e se abre aos gentios. São Paulo nada mais tem a ver com Tarso. Ele deixa o local e se torna global. Provavelmente foi o primeiro grande globalizador da religião. O cristianismo, que poderia não ter passado de uma seita do judaísmo, quando muito de uma mudança no judaísmo, graças a ele sai da Terra Santa e parte para o mundo. Não será mais a religião de um único povo, mas uma que se dirige a toda a humanidade. Por isso, foi essa a mais célebre das conversões, seguindo-se à mais célebre das epifanias.

 

Inhotim é uma revelação. Não conheço ninguém que tenha visitado o centro de arte e não tenha saído – a palavra que empregam é geralmente uma destas – deslumbrado, impressionado. Eu tive o privilégio de ser apresentado ao centro por Cláudio de Moura Castro, que me trouxe um catálogo que, a cada imagem, causava essas impressões – marcas fortes que ficam na alma e, por vezes, no corpo – que não são deléveis. Ficam. Fui assim seduzido pelas imagens, antes de conhecer o lugar que celebra, justamente, imagens, pois que arte é isso, são imagens. Falei em “seduzir”, e a palavra é correta – pois seduzir é desviar (ducere) do caminho certo. Mas o que é certo, quando se trata de arte, de criação? O certo geralmente é o menos bom. O que vai gerar futuro começa geralmente por ser errado. As obras que estão em Inhotim, sejam as que cabem no conceito usual de imagem em duas dimensões, sejam as que se abrem para mais dimensões, inclusive a sonora, rompem com a doxa, com a ortodoxia, isto é, com a opinião dita correta. Elas desviam-se e desviam quem as frequenta. Esse convite ao torto, ao diferente, é uma das contribuições mais importantes que a arte contemporânea oferece a quem a vivencia (por isso mesmo, em Inhotim não há espectadores, que manteriam com os objetos a distância mais ou menos tranquila que vige entre um sujeito e o objeto que em nada o modifica). Inhotim não é feito para os Bourbons da legenda, que voltam ao poder na França em 1814, depois de um quarto de século exilados, “não tendo esquecido nem aprendido nada”. É uma experiência de vida que faz aprender muita coisa e, sem dúvida, esquecer outras – porque talvez não haja aprendizado sem essa faculdade, que Nietzsche dizia ser extremamente ativa, extremamente necessária para a criação, que é o esquecimento. A cultura que vale a pena é esta: a que modifica quem a frequenta.

 

Lembro Freud, num artigo de 1916, em que deplorava a Grande Guerra então em curso, recordando com nostalgia os tempos imediatamente anteriores, quando o homem culto viajava pela Europa como se cada país, cada cultura, fosse uma sala diferente de um grande museu. Nada define melhor a concepção do que não é Inhotim. O Centro de Arte Contemporânea não é um museu feito para as pessoas apenas se deleitarem apreciando objetos variados, que em nada as interpelem. É uma série de perguntas, quase um questionário que se dirige a cada um de nós, contestando-nos, oferecendo-nos prazer – sem dúvida –, mas também sucessivas dúvidas. E com isso temos revelações que são diferentes das que inspiraram o apóstolo, pois elas não trazem certezas, não entregam uma nova fé, uma ortodoxia que suplante as anteriores, mas questões, perguntas. Não é por acaso que Inhotim muda a cabeça de quem se acostumou a apenas se deleitar ante as obras de arte, retirando-os do mundo possivelmente blasê do connoisseur, ao mesmo tempo que fascina os jovens, aqueles de olhar virgem.

 

Termino com uma anedota veraz. Certa vez, encontraram-se os dois maiores filósofos que a França proporcionou ao mundo na segunda metade do século XX. Era por volta de 1970. Foucault disse a Deleuze: “Um dia, o século será deleuziano”. Queria dizer que os pensamentos tradicionais, os que remetem a Aristóteles, Descartes e Kant, não davam conta do que despontava entre os mais novos. Ora, é o que presenciamos desde pelo menos aquela época imediatamente posterior a maio de 1968. O mundo muda em alta velocidade e mal damos conta de entender, quanto mais teorizar, o que nasce diante dos olhos. Inhotim faz parte desse novo mundo. Podemos ter escassa teoria a respeito, mas nós o enxergamos. Por isso, certamente, os jovens aqui encontram tanto prazer.

 

 

*Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política da Universidade de São Paulo e membro do Conselho Consultivo de Inhotim. Ele também faz parte do Programa Amigos do Inhotim desde 2011.

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Carta a Amilcar de Castro

Rodrigo Moura

Amilcar,

 

Finalmente fui ver tua exposição na Praça da Liberdade. Como deve ter lhe contado o Affonso Ávila, aquilo virou uma procissão de centros culturais, um corredor ou algo assim. Naquele de um banco, fizeram agora uma mostra com as tuas coisas. Eu confesso que custei para encontrar as salas todas, mas quando achei meu caminho dentro das galerias, ouvi tua voz de novo no meu ouvido, aquele som de trovão que me mostrou o caminho há quase duas décadas. Talvez você não ficasse tão incomodado quanto eu fiquei com as paredes coloridas – afinal, você sempre falava que aquelas tuas cores não eram de fato cores no sentido pictórico, mas informação cromática gráfica. Talvez você conseguisse me explicar por que a exposição não tem trabalhos históricos, como se você não precisasse deles mesmo depois de mais de dez anos da tua morte. E por que tem trabalhos de poucas coleções, todas em Minas, e por que a nem um museu foi pedida uma escultura tua – penso pelo menos na Pampulha, logo ali, a quem você doou peças tão bonitas e importantes, mas o MAM do Rio é igualmente aquinhoado. E talvez você me respondesse, um pouco sério e um pouco irônico, que não fosse esta parcialidade seria outra. Que tudo é mesmo relativo neste mundo. Nunca me esqueço de quando te encontrei em Vitória, onde fui para apenas ver tua exposição, uma exposição deslumbrante, e você me perguntou: “você veio aqui só pra isso”? Você estava falando sério? Nunca saberei.

 

Andar por aquelas salas hoje me renovou o contato contigo, e o que mais se pode pedir de uma exposição? Não ignoro que quando te perdemos você vinha de alguns dos anos mais prolíficos de tua obra, mais geniais, mas eu duvido que houvesse sido diferente décadas anteriores. Por esta exposição, dificilmente saberemos. Mas, que diabo, você odiava a ideia de mudança. Me lembro das muitas vezes que te liguei para comentar uma exposição tua, ou uma obra nova, e o pavor com que você sempre me demovia da ideia de algo pudesse ter mudado ali. Madeira? É mesma coisa do cor-ten. Vidro? Já fazia nos anos 1950. Inox? Fez em Nova York. Cor? Eu já não sabia? Nesta exposição, quase tudo do fim dos 90, eu revi as mais lindas madeiras (quase 100) e conjuntos expressivos de corte e corte e dobra, principalmente em escala pequena, que é o que dá pra fazer ali. As esculturas maiores, numa das salas, fazem tanto pelo nosso corpo, e eu quase havia me esquecido, cansado de vê-las em fotografias. Tua obra de gravador (que você dizia que era só outra maneira de desenhar) está tratada com rara seriedade, foi um prazer constatar. Mas talvez tudo, na vida, não passe de mais uma maneira de desenhar. Ou, para mim, de escrever. E eu ainda quero te ver escrutinado, datado, sintetizando o Max Bill antes de todo mundo, em 1953, fundamental, vital, central no fermento neoconcreto, do tamanho daquelas que tinham em você um par do mesmo tamanho do deles. Esta vez virá ou eu seguirei esperando, até que talvez eu mesmo a faça. A diferença entre  escala e tamanho, me parece, é uma das tuas grandes lições – e como são monumentais aquelas esculturas pequenas, são cheias de imaginação, e como trazem uma ideia de duração que é tão libertadora dos dogmas, sedutoramente falsos, da arte de bula.

 

Descendo as escadas, o prédio velhusco, Belo Horizonte vestida de São Paulo, não estava imune a você, e as forjas, os estucos e os vitrais cantavam a tua presença e se orgulhavam na tua companhia. No lado de fora, o mundo, na saída, não estava imune a você. E cada ângulo reto, cada encontro de vidro e concreto, cada empena modernista, Minas Caixa, Ipsemg, rua Goiás, papelaria Carol, existia desta maneira eterna que o teu trabalho existe. Depois de ti, nunca estaremos indiferentes à forma.

 

Numa das últimas vezes que nos falamos, você me disse que estava feliz com aquela tua última exposição na Pinacoteca. Escrevendo pro jornal, eu te citei então: “Não acho ruim, me dá prazer fazer. Gostei de como está ajeitado”. Como eu disse na época: parece simples. Continua não sendo.

 

O carinho agradecido de apenas mais um dos teus alunos,

 

Rodrigo

 

Belo Horizonte, 14 de dezembro de 2013

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Laboratório para a arte

Redação Inhotim

O ambiente é claro. Pela janela arredondada, a luz do fim de tarde e o clima urbano invadem a sala. O barulho das buzinas faz quase sumir os cochichos dos visitantes. Atentos, avaliam os quadros e fotos pendurados nas paredes. No centro, apoios recebem outras peças da exposição. Em comum entre elas está um dos mais antigos suportes do conhecimento, surgido na Idade Média: o livro.

 

Intitulada Sublevações do Livro: Objeto – Espaço – Matéria, a mostra realizada no início de dezembro reúne produções de participantes do Laboratório Inhotim, projeto educativo do Instituto, desenvolvido com alunos da rede municipal de Brumadinho/MG. Durante todo o ano de 2013, os alunos investigaram diferentes aspectos dessa antiga inovação técnica, que hoje aguarda o momento de se tornar obsoleta, ou não.

 

Entre as 17 experiências, estão duas de Rafaela Hermenegilda. “Quando comecei meu trabalho, pensei primeiramente em achar uma matéria ou objeto-chave. Entre vários, escolhi a árvore, já que é uma planta muito importante para o mundo e produz duas coisas essenciais à minha vida: o oxigênio e as folhas de papel que compõem os livros”, conta a menina, do alto de seus 14 anos. Para construir uma de suas propostas, Rafaela usou o livro como terreno fértil, literalmente. “A peça faz uma brincadeira de troca, já que a árvore passou a ser o receptor da escrita, e o livro teve que acolher a árvore”. Uma metáfora poética de como o conhecimento e a leitura podem fazer florescer belas ideias.

 

Laboratório Inhotim - Obra em exposiçãoAo plantar a espécie no livro, Rafaela atribuiu novos sentidos à literatura e à natureza Foto: Rossana Magri
 

 

Já em sua série de fotografias, é a árvore o esteio para a contação de histórias. “As pessoas escrevem nas árvores, registrando momentos especiais, ferindo-as com as palavras que resumem lembranças marcantes. Comecei a fotografar todas essas escritas que consegui achar. Desenvolvi a ideia de que elas são livros-objetos”. Sobre sua participação no projeto, ela resume: “Foi muito gratificante aprender um pouco sobre a arte e descobrir, talvez, uma profissão”.