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Carta a Amilcar de Castro

Rodrigo Moura

Amilcar,

 

Finalmente fui ver tua exposição na Praça da Liberdade. Como deve ter lhe contado o Affonso Ávila, aquilo virou uma procissão de centros culturais, um corredor ou algo assim. Naquele de um banco, fizeram agora uma mostra com as tuas coisas. Eu confesso que custei para encontrar as salas todas, mas quando achei meu caminho dentro das galerias, ouvi tua voz de novo no meu ouvido, aquele som de trovão que me mostrou o caminho há quase duas décadas. Talvez você não ficasse tão incomodado quanto eu fiquei com as paredes coloridas – afinal, você sempre falava que aquelas tuas cores não eram de fato cores no sentido pictórico, mas informação cromática gráfica. Talvez você conseguisse me explicar por que a exposição não tem trabalhos históricos, como se você não precisasse deles mesmo depois de mais de dez anos da tua morte. E por que tem trabalhos de poucas coleções, todas em Minas, e por que a nem um museu foi pedida uma escultura tua – penso pelo menos na Pampulha, logo ali, a quem você doou peças tão bonitas e importantes, mas o MAM do Rio é igualmente aquinhoado. E talvez você me respondesse, um pouco sério e um pouco irônico, que não fosse esta parcialidade seria outra. Que tudo é mesmo relativo neste mundo. Nunca me esqueço de quando te encontrei em Vitória, onde fui para apenas ver tua exposição, uma exposição deslumbrante, e você me perguntou: “você veio aqui só pra isso”? Você estava falando sério? Nunca saberei.

 

Andar por aquelas salas hoje me renovou o contato contigo, e o que mais se pode pedir de uma exposição? Não ignoro que quando te perdemos você vinha de alguns dos anos mais prolíficos de tua obra, mais geniais, mas eu duvido que houvesse sido diferente décadas anteriores. Por esta exposição, dificilmente saberemos. Mas, que diabo, você odiava a ideia de mudança. Me lembro das muitas vezes que te liguei para comentar uma exposição tua, ou uma obra nova, e o pavor com que você sempre me demovia da ideia de algo pudesse ter mudado ali. Madeira? É mesma coisa do cor-ten. Vidro? Já fazia nos anos 1950. Inox? Fez em Nova York. Cor? Eu já não sabia? Nesta exposição, quase tudo do fim dos 90, eu revi as mais lindas madeiras (quase 100) e conjuntos expressivos de corte e corte e dobra, principalmente em escala pequena, que é o que dá pra fazer ali. As esculturas maiores, numa das salas, fazem tanto pelo nosso corpo, e eu quase havia me esquecido, cansado de vê-las em fotografias. Tua obra de gravador (que você dizia que era só outra maneira de desenhar) está tratada com rara seriedade, foi um prazer constatar. Mas talvez tudo, na vida, não passe de mais uma maneira de desenhar. Ou, para mim, de escrever. E eu ainda quero te ver escrutinado, datado, sintetizando o Max Bill antes de todo mundo, em 1953, fundamental, vital, central no fermento neoconcreto, do tamanho daquelas que tinham em você um par do mesmo tamanho do deles. Esta vez virá ou eu seguirei esperando, até que talvez eu mesmo a faça. A diferença entre  escala e tamanho, me parece, é uma das tuas grandes lições – e como são monumentais aquelas esculturas pequenas, são cheias de imaginação, e como trazem uma ideia de duração que é tão libertadora dos dogmas, sedutoramente falsos, da arte de bula.

 

Descendo as escadas, o prédio velhusco, Belo Horizonte vestida de São Paulo, não estava imune a você, e as forjas, os estucos e os vitrais cantavam a tua presença e se orgulhavam na tua companhia. No lado de fora, o mundo, na saída, não estava imune a você. E cada ângulo reto, cada encontro de vidro e concreto, cada empena modernista, Minas Caixa, Ipsemg, rua Goiás, papelaria Carol, existia desta maneira eterna que o teu trabalho existe. Depois de ti, nunca estaremos indiferentes à forma.

 

Numa das últimas vezes que nos falamos, você me disse que estava feliz com aquela tua última exposição na Pinacoteca. Escrevendo pro jornal, eu te citei então: “Não acho ruim, me dá prazer fazer. Gostei de como está ajeitado”. Como eu disse na época: parece simples. Continua não sendo.

 

O carinho agradecido de apenas mais um dos teus alunos,

 

Rodrigo

 

Belo Horizonte, 14 de dezembro de 2013

Letter to Amilcar de Castro

Rodrigo Moura

Amilcar,

 

I finally got to visit your exhibit at Praça da Liberdade.  As Affonso Ávila must have told you, that place has become a procession of cultural centers, a corridor or something of the kind.  In the cultural center that belongs to a bank, they have now put together an exhibit with your work.  I have to confess that it took me a while to find all the rooms, but when I found my way in the galleries, I once again heard your voice on the back of my mind, that sound of thunder that showed me the way almost two decades ago.  Maybe you wouldn’t be as disturbed by the colorful walls as I was – after all, you’ve always said those colors of yours were not actual colors in the pictorial sense, but rather graphic chromatic information.  You might have been able to explain to me why the exhibit doesn´t have any historical works, as if you didn’t need them even 10 years after your passing.  And why the works displayed represent a few of your collections, all in Minas, and why not a single museum was asked to make one of your sculptures available – I can think at least of Pampulha, that place to which to have donated such beautiful and important pieces of your work, even though the Museum of Modern Art in Rio, MAM, has also gotten an equal share of your work.   You might have been able to answer me in a slightly serious, yet ironic, way, that if it hadn’t been for this partiality, it would have been for another one.  You might have said that everything in the world is relative. I will never forget the time we met in Vitória, where I went especially to see your exhibit, a stunning exhibit, and you asked me, “did you come here only for this?”.  Did you mean that? I’ll never know.

 

Walking around those rooms today has brought me once again closer to you. What else can one ask of an exhibit?  I’m aware that just before we lost you, you had had some of the most prolific years of your work, the most genius years, yet, I doubt it would have been any different in the previous decades.  Based on this exhibit, one could hardly tell.  But, what the heck, you hated the idea of change.  I recall the many times I called you to comment on one of your exhibits, or a new artwork, and the fear with which you always tried to dissuade me from the idea that something could have changed.  Wood? It is the same as Cor-ten.  Glass? You already did it in the 1950s? You did it in New York. Color? Didn’t I already know it? In this exhibit, almost everything was from the late 90s. I once again saw the most beautiful woods (nearly 100) and expressive cut-by-cut and folded sets, especially in those in small scale, which is what their space allows them to do.  In one of the rooms, the larger sculptures do so much for our bodies, and I had almost forgotten, so much I saw their photographs.  Your work as an engraver (which you used to say was just another way of drawing) was treated with rare earnestness. It was a pleasure to see that.  But, then, maybe everything is life is nothing but just another way of drawing.  Or, for me, of writing.  And I still want to see you being scrutinized, dated, synthetizing Max Ball before everyone else, back in 1953, essential, vital, central in the recipe for neoconcretism, as big as those who considered you a peer of their own magnitude.  This time will come and I’ll keep on waiting, until maybe one day I do it myself.  It seems to me that the difference between scale and size is one of your most important lessons – how monumental those small sculptures are, full of imagination, and what a sense of duration they bear, which is so liberating when it comes to seductively phony dogmas of nearly unintelligible  art.

 

As I went down the stairs in the old building, Belo Horizonte, dressed up as São Paulo, wasn’t immune to you, and the metalworks, stuccos and stained glass windows celebrated your presence and took pride in your company.  Outside, in the exit, the world was not immune to you.  And every straight angle, every time glass met with concrete, each modernist deviation, Minas Caixa and Ipsemg buildings, Rua Goiás, Carol stationary, existed in the same everlasting way your work exists.  After you, we will never be indifferent to form.

 

During one of our last conversations, you told me you were happy with your last exhibit at Pinacoteca.  Writing to the paper, I quoted you, “I don’t think it is bad, it is a pleasure for me to do it.  I like the way they arranged things”.  As I mentioned back then, “it looks simple”.  It still isn´t.

 

Grateful affection from just another one of your students,

 

Rodrigo

 

Belo Horizonte, December 14, 2013.