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Passagem de som

Francisco Bosco

Eis uma cena que venho testemunhando inúmeras vezes, já há muitos anos: quando João Bosco vai testar o som, com o teatro ainda fechado, horas ou momentos antes de iniciar o show, as poucas pessoas que, de algum modo, podem estar por ali, vão, aos poucos, interrompendo seus afazeres. Algumas chegam a sentar nas poltronas, como se fossem o público oficial, atraídas pelo que se passa no palco. Ali está João Bosco interpretando músicas de seu repertório doméstico, íntimo, afetivo. Canções que nunca gravou, nem mesmo executou publicamente. Um repertório surpreendente, que percorre desde standards do jazz a trilhas de cinema, passando por clássicos do nosso cancioneiro, invariavelmente reinventados nos termos próprios do seu universo musical. Ninguém se levanta até que aquela apresentação particular tenha fim. Não foram poucas as vezes que já o vi ser aplaudido, ali, no aquecimento, antes mesmo de a bola rolar.

 

Nada mais apropriado para tornar propriamente pública essa cena, pela primeira vez, do que fazê-lo no ambiente experimental do Inhotim, no próximo domingo, 12/10, às 15h. A passagem de som é uma experiência musical protegida das dimensões comerciais e industriais, tantas vezes banalizadas, da música popular. É a cena da pura artesania, do amadorismo, da informalidade das formas mais avançadas, do artista como se estivesse a sós com suas ideias e desejos musicais. É o território da plena liberdade criativa, que uma instituição como o Inhotim acolhe e propicia.

 

Experimental, o show terá João Bosco apresentando suas leituras particulares de clássicos e pérolas obscurecidas pelo tempo, e conversando com o público sobre elas. Ele fala sobre as canções, seus autores, seus modos de pensar a música e os modos como ele, João Bosco, as repensou. Música e metamúsica, portanto.

 

O repertório inclui supresas, como a versão do standard “My favourite things”, já radicalmente transcriado por John Coltrane, que, em passos gigantes, transformou a canção ingênua da trilha de A noviça rebelde em um transe jazzístico sem qualquer inocência. João Bosco dá outro salto e conduz a canção a Áfricas que ela jamais imaginou conter.

 

Em “Estate”, consagrada por João Gilberto no disco Amoroso, João Bosco submete a canção a um pensamento musical como que oposto ao do pai da bossa nova. Se João Gilberto tinha por método repetir a canção várias vezes, aprofundando-a como numa espécie de mantra, numa circularidade característica da música modal, João Bosco leva a canção a uma espécie de discussão, criando para ela um improviso especial e uma melodia alternativa, paralela à original que tocamos abstratamente em nossa memória.

 

Num tal cenário físico e mental, o artista mineiro não poderia deixar de trazer à tona suas próprias Minas Gerais. É assim que ele interpreta o clássico seresteiro “Noite cheia de estrelas”, de Cândido das Neves (morto em Conselheiro Lafaiete, em decorrência de uma pneumonia adquirida no sereno de uma serenata), articulando-a ao clássico universal “Because”, dos Beatles, tornados música mineira pela borgiana influência retrospectiva que neles exerceu o Clube da Esquina, e faz o percurso musical desaguar em “Caça à raposa”, com o barroquismo onírico de suas melodia e letra.

 

Minas ainda retorna quando João Bosco uni o samba “João do Pulo” (também dele e Aldir Blanc) à sua leitura de “Clube da esquina 2”. A associação, aqui, é, digamos, sócio-musical. O campeão mundial brasileiro, negro, que teve a perna amputada, é identificado à ambiguidade da música de Milton Nascimento, tão objetivamente triste, tão subjetivamente alegre. Como se em ambos se revelasse a própria ambivalência brasileira, seus problemas sem solução, suas soluções sem problemas. Nosso mesmo núcleo originante de venenos e remédios, para usar a expressão de José Miguel Wisnik.

 

Muito mais há: “Invitation” (Bronislaw Kapper), “Lujon” (Henry Mancini), “April child” (Moacir Santos), “Medo de amar” (Vinicius de Moraes), além de alguns dos sempre esperados sucessos de sua autoria. Mas não devo estender tanto esse texto. O som de João Bosco passa, no Inhotim, por grandes ideias musicais – iluminando-as, ressignificando-as, mostrando aproximações insuspeitadas e diferenças singulares – como quem passeia pelas obras nos jardins realizando seus próprios percursos mentais. Parafraseando o crítico literário, é um caso atípico, e imperdível, de ideias dentro do lugar.